Como \u00e9 interessante a gente se flagrar em \u201cato inadequado\u201d atrav\u00e9s de uma obra de arte. Se ver e se rever. Pois foi assim que, com uma gargalhada, eu me vi repetindo padr\u00f5es culturais e express\u00f5es idiom\u00e1ticas (que nunca tiveram pra mim ideia de preconceito), com o espet\u00e1culo de Carolina Virguez. <\/p>\n\n\n\n
Foi preciso uma \u201c\u00edndia colombiana\u201d contando hist\u00f3rias mulheres \u201cbab\u00e1s\u201d negras para que eu percebesse minha \u201cbranquitude baiana\u201d. Em \u201cSusun\u00e9, contos de mulheres negras\u201d a interprete mistura suas mem\u00f3rias a contos de mulheres negras e refaz sua trajet\u00f3ria de mulher, imigrante, latino-americana, artista e n\u00e3o-\u00edndia (segundo sua m\u00e3e). <\/p>\n\n\n\n
Pois como foi isso? Se ver e se rever? Pois a magistral Carolina conta que quando chegou no Brasil, ainda garota, ouviu na faculdade que \u201cneguinho roubou meu sandu\u00edche\u201d, que \u201cneguinho bagun\u00e7ou tudo\u201d, \u201cque neguinho pegou o guarda-chuva\u201d, intrigada ela imaginou que neguinho era um cara muito do buli\u00e7oso. O seu espanto cresceu quando ouviu, em outro grupo, que \u201cneguinho quer me derrubar\u201d e ela ent\u00e3o perguntou… Mas voc\u00ea tamb\u00e9m conhece neguinho? Quem \u00e9 neguinho? E ouviu ainda mais espantada: \u201cNeguinho n\u00e3o \u00e9 ningu\u00e9m\u201d!!!!! \u00c9 uma express\u00e3o, uma generaliza\u00e7\u00e3o… Carolina segue o racioc\u00ednio e encontra o \u00edndio colombiano como o equivalente ao \u201cneguinho\u201d em sua terra natal e espanta-se mais ainda quando se v\u00ea \u00edndia no Brasil, o que \u00e9 prontamente recha\u00e7ado por sua m\u00e3e. A cena em que ela mostra suas fotos de inf\u00e2ncia, junto com fotos de crian\u00e7as negras e finaliza com uma bonequinha loura-padr\u00e3o \u00e9 genial. <\/p>\n\n\n\n
Eu baiana, me espanto tamb\u00e9m. Neguinho n\u00e3o \u00e9 das express\u00f5es que use muito, mas n\u00e3o imposs\u00edvel de usar: \u201cneguinho liga som alto\u201d, \u201cneguinho s\u00f3 pensa em carnaval\u201d, \u201cneguinho apronta\u201d. E, ent\u00e3o, me vejo e revejo, eu que nunca pensei em \u201cneguinho\u201d como uma pessoa negra… s\u00f3 quando vi na boca de uma \u00edndia, que n\u00e3o era \u00edndia, que me percebo sem ter percebido de onde a express\u00e3o vem. A\u00ed j\u00e1 me pareceu diferente. Lembro que diversas vezes no Sul ouvi piadas \u2013 Oh, baiana, trouxe a rede? – Oh baiana, t\u00e1 de novo na micareta? \u2013 Oh, mainha, qu\u00eade painho? A percuss\u00e3o do espet\u00e1culo me traz minha Bahia. Somos por aqui tambores como somos dend\u00ea. Da\u00ed vou fazendo conex\u00f5es, na Bahia sou loura, no sul sou baiana, como baiana sou pregui\u00e7osa, no interior sou da cidade grande, no eixo sou tabaroa do nordeste, no estrangeiro sou brasileira e sendo brasileira sou quenga. Se penso em ancestralidade, a\u00ed \u00e9 bolo doido, barril dobrado, negra, \u00edndia, loura, at\u00e9 padre que largou batina e casou com a mula-sem-cabe\u00e7a na minha fam\u00edlia tem. Uns tantos loucos. Devotos de todos os tipos. Tem vermelhos e verde-amarelos, ambos com armas em punho. Se penso em cultura sou um almanaque, colcha de retalhos de tudo de vi e ouvi, sou americana velha hollywood, sou c\u00f4mica italiana, sou Espanha filha de Almodovar com Dali e russa Tchecoviana. Sou a soma de meus poetas, de palavras ou cores. Fa\u00e7o moqueca ouvindo Guns and Roses. Sou o mundo todo. Assim me irmano com a atriz colombiana, pois de l\u00e1 me sinto um pouco, sem nunca ter ido por l\u00e1. Mas Gabo vive em mim. E nessa colcha de retalhos nos vejo todos parentes de todos. Brav\u00edssimo Carolina, obrigada por me proporcionar reflex\u00e3o, obrigada por me fazer me ver e me rever.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"
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