Em “O inferno é um espelho da borda amarela”, Wander B. nos acolhe com amor em sua insônia
  25, Aug, 2022
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Antes de iniciar o espetáculo, Wander pede para que as pessoas prestem atenção também aos sons de suas próprias casas e que os deixem participar daquele momento. “Estar em casa, faz parte da peça”, diz o artista que, nos acolhe, incluindo o extracampo de nossas vidas. Tudo faz parte da peça. Ela e nós, em nossas casas. E aí, a amizade já está garantida.
“Sejam benvindos ao meu inferno”, no escuro, com camiseta preta e somente com rosto, pescoço, ombros e braços iluminados, Wander se movimenta em frente à câmera do zoom, entre o close e o plano médio. Gesticula. Usa as expressões faciais, o seu corpo e voz, para nos levar ao mergulho de sua insônia. Ele trata de questões existenciais e rotineiras. Resgata na memória situações vividas com seu pai, suas palavras, seus conselhos.
Com o mínimo, apenas ele em quadro, Wander nos emociona, nos faz rir e pensar junto. Mas, mais que isso, ele consegue nos envolver quando relata experiências que todos nós já vivemos. Ele as conta de forma tão intensa e verdadeira, que é como se estivéssemos vivendo aquela situação naquele exato momento. Quando ele se questiona, é como se nós nos questionássemos também. Essa intimidade nos coloca ao seu lado, ouvindo seus segredos e aflições.
Wander se utiliza dos conceitos do Teatro Essencial. É um artista completo. Domina e tem controle de todo o processo criativo, a escrita, a atuação e a direção. É autossuficiente. Transita por muitas áreas. Domina com maestria o teatro, é cantor, faz filmes, escreve livros, faz tudo isso com tanta desenvoltura e segurança que parece ser fácil. Sabe quando você vê aquele ginasta fazendo piruetas e caindo em pé sorrindo, feliz? Assim é o Wander. Ele faz tudo com tanta leveza, com tanto domínio e intimidade do processo criativo, que tudo flui como se fosse natural.
Assisti ao “O inferno é um espelho da borda laranja” na sua estreia, há dois anos, quando o espetáculo saiu do forno e foi direto para as telas do zoom. A partir de uma provocação da Denise Stoklos, Wander criou, escreveu (com dramaturgismo de Elenice Zerneri), atuou e dirigiu. Ficou em cartaz durante toda a pandemia.
Aquela versão inicial, já muito potente, com essa estética simples e tão elaborada, que ressalta o conteúdo, a densidade do texto e a interpretação, me tocou com muita intensidade.
A versão atual, apresentada no 2º FIDS, está ainda mais profunda. Wander trouxe mais de suas vivências com o pai, momentos tocantes, como a sua despedida, quando, em um quarto de hospital, um dia antes do seu falecimento, ele o incentivou. “‘Amanhã, independente do que acontecer aqui, você se apresenta. Você vai lá e arregaça’, foi a última coisa que ouvi da boca de meu pai”, Wander, emocionado, nos toca fundo e capta nossa cumplicidade, nos paralisando em sua atuação e entrega. Ao expor esta experiência tão visceral, Wander injeta humanidade, nos colocando ainda mais perto, muito perto, como amigos íntimos, aqueles que escutam as confidencias e fazem cafuné, se abraçam. É sentir junto, se emocionar. Friccionar. É Teatro Essencial.
“Deus não gosta dos círculos perfeitos, dos triângulos equiláteros e das notinhas afinadas… Deus gosta é das coisas tortas”, Wander nos acolhe com amor em sua jornada de insônia.
Leide Jacob, cineasta e produtora cultural