Neguinho apronta! (por Teresa Costalima) - FIDS

Neguinho apronta! (por Teresa Costalima)

  06, May, 2022

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Como é interessante a gente se flagrar em “ato inadequado” através de uma obra de arte. Se ver e se rever. Pois foi assim que, com uma gargalhada, eu me vi repetindo padrões culturais e expressões idiomáticas (que nunca tiveram pra mim ideia de preconceito), com o espetáculo de Carolina Virguez.

Foi preciso uma “índia colombiana” contando histórias mulheres “babás” negras para que eu percebesse minha “branquitude baiana”. Em “Susuné, contos de mulheres negras” a interprete mistura suas memórias a contos de mulheres negras e refaz sua trajetória de mulher, imigrante, latino-americana, artista e não-índia (segundo sua mãe).

Pois como foi isso? Se ver e se rever? Pois a magistral Carolina conta que quando chegou no Brasil, ainda garota, ouviu na faculdade que “neguinho roubou meu sanduíche”, que “neguinho bagunçou tudo”, “que neguinho pegou o guarda-chuva”, intrigada ela imaginou que neguinho era um cara muito do buliçoso. O seu espanto cresceu quando ouviu, em outro grupo, que “neguinho quer me derrubar” e ela então perguntou… Mas você também conhece neguinho? Quem é neguinho? E ouviu ainda mais espantada: “Neguinho não é ninguém”!!!!! É uma expressão, uma generalização… Carolina segue o raciocínio e encontra o índio colombiano como o equivalente ao “neguinho” em sua terra natal e espanta-se mais ainda quando se vê índia no Brasil, o que é prontamente rechaçado por sua mãe. A cena em que ela mostra suas fotos de infância, junto com fotos de crianças negras e finaliza com uma bonequinha loura-padrão é genial.

Eu baiana, me espanto também. Neguinho não é das expressões que use muito, mas não impossível de usar: “neguinho liga som alto”, “neguinho só pensa em carnaval”, “neguinho apronta”. E, então, me vejo e revejo, eu que nunca pensei em “neguinho” como uma pessoa negra… só quando vi na boca de uma índia, que não era índia, que me percebo sem ter percebido de onde a expressão vem. Aí já me pareceu diferente. Lembro que diversas vezes no Sul ouvi piadas – Oh, baiana, trouxe a rede? – Oh baiana, tá de novo na micareta? – Oh, mainha, quêde painho? A percussão do espetáculo me traz minha Bahia. Somos por aqui tambores como somos dendê. Daí vou fazendo conexões, na Bahia sou loura, no sul sou baiana, como baiana sou preguiçosa, no interior sou da cidade grande, no eixo sou tabaroa do nordeste, no estrangeiro sou brasileira e sendo brasileira sou quenga. Se penso em ancestralidade, aí é bolo doido, barril dobrado, negra, índia, loura, até padre que largou batina e casou com a mula-sem-cabeça na minha família tem. Uns tantos loucos. Devotos de todos os tipos. Tem vermelhos e verde-amarelos, ambos com armas em punho. Se penso em cultura sou um almanaque, colcha de retalhos de tudo de vi e ouvi, sou americana velha hollywood, sou cômica italiana, sou Espanha filha de Almodovar com Dali e russa Tchecoviana. Sou a soma de meus poetas, de palavras ou cores. Faço moqueca ouvindo Guns and Roses. Sou o mundo todo. Assim me irmano com a atriz colombiana, pois de lá me sinto um pouco, sem nunca ter ido por lá. Mas Gabo vive em mim. E nessa colcha de retalhos nos vejo todos parentes de todos. Bravíssimo Carolina, obrigada por me proporcionar reflexão, obrigada por me fazer me ver e me rever.